Quando li o título do último texto de Ruy Castro, na Folha de São Paulo – “O texto que se escreve com as pernas” – pus-me a pensar. Em instantes, viria a carga de ombros da realidade. Pois é, Ruy: as pernas também escrevem. Mesmo.
Ainda ontem rascunharam as minhas: “saídas do Teatro Politeama, numa esquina com o Rossio, demos com os prédios mal-amados”. Entendo-as, às pernas. As fachadas ou se amam ou desamam. E é em domingos de sol que, apontadas para a luz, se avivam. As lembradas e pomposas, de fundo para varandins e janelas Art Déco; as esquecidas e degradadas, entregues ao vandalismo e ao lugar de estorvo em fotografias de casal. Deus as tenha.
Correr o laró é feito desta matéria: trocar caminhos até ao destino certo. Planeado. Desejado – como os 20ml de cerveja a que não se olha o preço. Até que se olha. Mas não cairei em especulação: ia no ato de andar ‘ao Deus dará’ – certo?
Então: nem sempre gosto disso, e as pernas que me perdoem. Gosto do roteiro. Aprecio X às 5 e Y às 7, para, às 6, me deixar levar na cantiga de uma galeria de arte. É o inesperado que dá o gosto à quebra das regras. É a surpresa que adoça o fascínio da liberdade.
Enquanto se cumpre o planeado. Além de em Deus, creia em mim, leitor: é possível. Entregue-se à imaginação de se sentar com alguém, num banco de madeira recém-polida, sem assunto. Isso: sem um único. A frase solta de Camões, no edifício passado, o rasto dos perfumes de adolescente, o carro na oficina, tudo é assunto. Até que chegam as 7.
Y, lembra-se? É para lá que vai. Já com mesa marcada, Y será, afinal, um copo de vinho e uma janela bem limpa para a rua. Será conversa: a que requer disponibilidade, boca para falar e ouvidos para ouvir. Coisa rara. Ao domingo, apanhe-a e aproveite-a como sol na eira. Até que, exaurido e mais bronzeado, se esqueça do carro na oficina e pouse as pernas na secretária para ditar um texto como este à máquina.
Viu? Pernas sem compromisso.
As pernas andam enquanto a cabeça imagina estarem acompanhadas em par.
O sol queima os ombros porque a sombra não está lá.
As pernas ditam os passos para poder sentar; encosto-me, pensando na perna que vou cruzar.