Assuntos do céu
Um alguém próximo contava-me as peripécias das suas férias. Em uma semana, e um dia em corredores de aeroporto, conta ele que viu muita coisa: tudo da lista de What To See In, as ruas, as fachadas, as roupas nas varandas e habitantes, dois ou três. Também viu a nata dos restaurantes: de fora. Com o carpaccio ao preço de um Botticelli, não obrigado, estava só a ver.
Instantes depois, pensei na minha última viagem para lá de Vilar Formoso – e pelo céu. O frenesim do Uber atrasado, o acordar pouco avantajado das senhoras em início de turno, o check-in, o peso da mala – afetada pela sarna dos livros -, a rotina de segurança.
O meu condicionador, aberto e inspecionado, foi barrado. O champô não. Lavagem sim, hidratação não. A espuma de barbear não era matéria de levar para o alto. Pela pressão aérea, tendo um derrame, podia espumar sapatos alheios. Um dos livros, talvez o da pior capa, foi folheado. Indo para um país católico, podia levar folhetins que me fariam parecer praticante. No aeroporto, nada escapa.
Só a porta de embarque que, movendo-se de vinte em vinte minutos, escorrega. Ora é a dezassete, ora é a dezasseis, ora – que horas são? – é a quinze. Pernas para que te quero. Sinalética? Pouca e longínqua. Vá andando: está no Wipeout (sem Camille Kostek, emoji tristonho).
Passados os obstáculos, a fila. Quem tinha letra A, para um lado; quem tinha letra B, para outro; quem tinha letra C, para outro. Não falo de porcos, leitor. Falo de nós – e de ordem.
Essa que acaba ao entrar no avião. Tendo as malas já rodopiado e se encaixado por cima das cabeças, começa o circo. O palhaço, de sapato bem engraxado, alto ou baixo, mexe as mãos à volta de um cinto. Ao dizer coisas, a partir da fila do meio impercetíveis, comanda o número para que pagamos. Pelo que entendemos, ao início, o dos horrores. Da tradução, retira-se a tradução: em risco de queda, não se mexam, não se espezinhem, não gritem, não se mijem, não mujam, não sejam humanos. Sejam AirFryers: é seguir as instruções para sair inteiro.
Concluída a viagem, e a conversa de circunstância com o desconhecido que me calhou – curioso sobre a minha formação universitária, elogioso do café com leite e do governo Passos Coelho, e à prova de earphones -, apanho o transfer. Circuito feito, falta a mala.
Observando o tapete rolante como quem espera a volta de Passos Coelho, aguardo-a. O impaciente do lado, certamente ludibriado pelas réstias de cheiro de condicionador, luta pela minha mala. A dele era um tom acima de cinzento. Comprada na mesma loja, veja-se – “também é do Norte?”. Com o material em mãos, fui à minha vida, tendo, propositadamente, me esquecido disto.
Entrar e sair mudado de um aeroporto é mais fácil do que era executar uma lobotomia nos anos 40. E, nessa época, por fontes inseguras, era como tirar o dente do siso. Para entusiastas da eutanásia, ouro sobre azul. Pense comigo, leitor.
Em caso de indigência capilar, agende viagem para a Turquia: a Minnie e o Pateta dos calvos. Da entrada à saída do aeroporto, com umas horas de jet lag e cansaço em banho-maria, ficará com uma leve impressão de menos cérebro. Para a vinda, encantado com os novos fios e a Pide – em turco, uma pizza, não a censura -, prefira um voo com escala. Após novos procedimentos de segurança, e um atestado de nudez no controlo fronteiriço, faça escala nos Países Baixos. Alegando sofrimento por baixa massa cerebral, peça eutanásia.
Antes penteie-se – e sorria com todos os dentes.