
Cada Páscoa é uma ferida sarada. Uma plaqueta sanguínea a mais. Na certeza de que, quando o peru e a batata assada acabarem, as histórias regarão a sobremesa.
É no caldo da nostalgia que emerge a família. Ora unida, ora desfeita, ora mais infeliz à sua maneira. Tolstoi tinha razão: cada família nutre e trata a sua infelicidade; à sua maneira.
É seu dever ser única, como cada ser humano. Eu não serei o leitor, nem os seus primos serão os meus. Nem os episódios de chupeta: do primo que a beijou mais do que a cruz, até aos 4 anos.
Há coisas que tardam: perceber o almoço de domingo é uma delas. Instigar uma reunião semanal dá que pensar, quando se é pequeno e uma esponja sincera. Quando se é mais o cantor Leonardo do que Cristo: "família unida é bom, mas reunida é uma bosta".
Certo? Errado, cantor Leonardo. É sobretudo reunida que a família se dá pelo nome. Pelos laços visíveis, para lá do sangue. Sangue temos todos. Até quando os laços se quebram e se voltam a colar com fita adesiva e o cuspe dos beijos da chegada.
Com a família que não se escolhe e a que se escolhe: os amigos, os amados, as amadas. Os arranjos florais e os copos que tilintam ao subir das gargalhadas. O almoço de domingo não é de domingo; é da vida.
É das lembranças, da mochila que tenho à frente, do bloco e dos livros que lhe dão peso. É do pão com chouriço que como, enquanto teclo. É a recorrência que surge nos restantes almoços.
O leitor sabe: como falar de comer enquanto se está a comer. Tradição portuguesa, quiçá sul-europeia, talvez latina. Das regras de confecção de um borrego assado, inscritas em pedra, às idas a restaurantes de difícil acesso, no Gerês. O tempo, a chuva, o preço do combustível, os lucros das gasolineiras e as tarifas de Trump são parte da ementa; do caminho; de cada garfada e golada. Inscritos em histórias.
Até ao próximo domingo.
Seu texto me abriu o apetite de uma forma que seria capaz de dispensar os talheres nesse momento e segurar um pedaço de carne com as mãos abocanhando cheio de saliva.