Abril, águas mil. Corrija-se: surpresas mil. Ainda anteontem, um apagão elétrico e, com ele, um trailer do apocalipse. Vi-o a caminhar, vi-o sentado no banco em frente à passadeira, vi-o da janela. Kubrick não filmaria melhor.
Serei rápido: imagine o leitor que está a tirar o carro da garagem, para mais um dia de trabalho e, pelo caminho, três a cinco faixas de um Ao Vivo de Tony Carreira – primavera em flor; o dia quer-se romântico. Para lá de dois quilómetros, percebe o óbvio. Questiona-se: a estrada sem semáforos?
Isso mesmo. Puff — e eis o trânsito em auto-gestão; peões a rodopiar por passadeiras; buzinas cravadas de impaciência. Seria ao alçar a mão ao bolso — onde o telemóvel, inútil, só permitiria chamadas de emergência — que entenderia. Zero barras de rede.
Motivos? Sem acesso a informação, espalhava-se a mensagem, de boca a boca, na Coreia do Norte de quinta categoria. Fui auscultando as ruas. Pelas 12, a culpa era dos franceses. Pelas 14, dos espanhóis. Pelas 15, da dependência energética do exterior. Pelas 16, da fraca implantação eleitoral do Partido Comunista. Pelas 17, vi até a volta de muitos ao Catolicismo. Dedos cruzados. Pai-Nossos.
Era o apelo. E a confirmação da lenda: ao cair do avião, não há ateus. Ou da luz, acrescento. Tudo isto ainda de dia, num céu aberto a ruas repletas. Garanto, leitor: foi um dia em cheio para reacionários. Casais à mostra, crianças na rua, brincadeiras de giz no chão, cães em reboliço. Também para os minimercados: o lucro foi grande. Pilhas eram a nova água no deserto.
Ao entrar no Merca-Tudo do bairro, farejei o Saara. O calor que estrangulava os botões da camisa; os berros incompreendidos dos vendedores; as queixas dos compradores; o aproveitamento da necessidade. Por uma luz ao fundo da cozinha — um esparguete à luz das pilhas e do cheiro a plástico. A nova água no deserto.
Disse-me hoje o senhor do talho que temeu o pior. O desperdício, a rarefação, a fome. “De que serve a montra sem luz?”: fiquei sem pio. De facto, de que serve a carne quando é mal vista? Também nós, de carne e osso, não servimos para nada se inteiramente dependentes.
Pelo apagão, culpe-se o acaso. Por mais esta missiva na caixa de entrada, não hesite, leitor: culpe o talhante.
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